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Foto do escritorJuliana Bordallo

Escolhas

Atualizado: 4 de jun.




O ano era 2016, sinto como se estivesse no tempo presente.

Meu corpo se recorda das sensações de um puerpério doloroso, intenso e solitário. Mas no meio do caos uma luz se apresentou quando em um festival descubro uma Rede de Mulheres Palhaças. Penso, logo existo, plagiando Descartes: uma rede de mulheres palhaças? 

Com esta pergunta muitas reflexões tomam conta da minha mente ansiosa. Eu, palhaça já há dezesseis anos, aprendi todo o tempo que palhaço não tem gênero, porque então pensar em uma rede de MULHERES PALHAÇAS?


A partir daí meu mundo na palhaçaria tomou um rumo diferente, foi um divisor de águas no meu fazer e pensar artístico, eu compreendi então porque tantas narrativas dos espetáculos que fazia não me contemplavam, porque me sentia tantas vezes tão fora daquela dramaturgia. A lógica da Flóris não seguia aqueles claques que os diretores me orientavam a fazer, não era como a Flóris resolveria aqueles conflitos, ali nasce então uma MULHER PALHAÇA, ali floresceu Flóris da Silva e junto com a Flóris um universo potente tomou conta da Juliana, porque não consigo dissociar Juliana de Flóris, Flóris é a bagaceira da Juliana, o ser que se comunica com a sociedade sem freios, sem medos de ser e de existir.


A frase “Eu não ando só” nunca fez tanto sentido, me reconheci e me conectei com tantas mulheres impressionantes que lutam e ocupam o lugar que tanto nos é negado, que juntas criam e revolucionam contra o conservadorismo da dramaturgia circense, que elucida para o mundo o quanto as narrativas clássicas são recheadas de preconceitos, contra nossas corpas, nossos gêneros, nossas orientações, nossas raças, o quanto o riso depreciativo é o que ganha a grande massa social. A partir daí, juntas constroem um novo olhar, rompem com os paradigmas e sublinham para o mundo a necessidade da mudança, o lugar saudável do riso, o rir juntes!


A arte para mim representa um lugar revolucionário, onde consigo me comunicar com o mundo, e o riso é o melhor acesso que encontro para refletir sobre temas pertinentes e alcançar as pessoas onde elas estão. Desde então a jornada dos meus espetáculos tomaram outros desenhos e pesquisas. 


Em 2018 inicia a jornada que hoje é a minha subversão, o meu solo Escolhas!


Para explicar a todes, essa jornada surge de um pedido, sim… sabe aqueles pedidos de contratantes que acha que a produção de um número é como a preparação de uma sopa, você simplesmente precisa cortar todos os ingredientes, colocar seu talento e tchanã: a sopa está pronta e saborosa, e o cliente mega satisfeito porque queria comer exatamente o seu tempero que ele sabe que é bom! Pois é, um contratante me liga e fala: Juliana, tudo bem? Nós temos um projeto com jovens aprendizes e precisamos de um número que fale sobre violência contra as mulheres e relações abusivas, mas não queremos tratar desse assunto de uma maneira PESADA, como adoramos a Flóris, entendemos que seria perfeito a Flóris criar um número de VINTE minutos sobre isso, assim fica mais leve, cômico, é mais próximo a linguagem dos jovens, você tem dois meses, tudo bem? 


Naquele momento meu cérebro quase surtou. Primeiro, a Flóris conseguir falar algo de maneira leve… já me deu um desespero, ela é muito bagaceira. Segundo, eles já estavam esperando que a Flóris fizesse algo para a plateia RIR desse tema… oi?.Terceiro, que eu precisava do cachê e não estava em condição de negar. Já imaginam né, aceitei.


Daquele dia em diante começo a pesquisa, converso com todes us amigues para escrever as violências que elus já viveram, tipos de relações abusivas que passaram, enfim... escrevi, pesquisei, li, e assim foram quase trinta dias e nada de conseguir estruturar um número de palhaçaria, estava me sentindo bloqueada, não conseguia encontrar o riso em histórias tão dolorosas e que deixaram tantas marcas nas pessoas. 


Resolvi então colocar no papel as minhas histórias. Ali, uma porta de Nárnia se abriu na minha frente, eu sempre tive para mim que havia passado por poucas experiências de abuso e violências, mas naquele momento situações surgiram em minha memória de uma maneira alucinante… eu juro,não estava sobre uso de nenhuma substância, simplesmente quanto mais eu mexia nas minhas lembranças mais elas ficavam elucidadas ali na minha frente, e eu entendi tantas violências e abusos que normalizei ao longo da minha trajetória, além daquelas que resolvi colocar na caixa do esquecimento da minha consciência. 


É isso, CONSCIÊNCIA, eu tomei de fato para mim o peso do significado dessa palavra. Tantas violências se encontravam inertes no meu inconsciente e naquele momento, CATAPAU, veio tudo à tona.


Resultado, corri para fazer terapia. Revirei diversas gavetas que me atravessaram, naquele momento era a minha criatura afetando diretamente a criadora. Flóris virou Juliana de cabeça para baixo.


Nessa revirada eu encontro o ponto chave da dramaturgia de Escolhas, o riso das fragilidades do ser, não era o riso dos abusos, mas sim o riso das vulnerabilidades da existência, eu declaro então que Escolhas seria o meu riso transgressor!


Em 2018, estréio o número "Escolhas”, ao qual circulei até 2022 de maneira sola, reinventando, remexendo, me curando, e assim circulei por festivais e encontros, nacionais e internacionais. Até que em 2022 decido transformar o número em um espetáculo solo e nesse momento convido minha amiga, maravilhosa e inspiradora Naomi Silman para embarcar nessa jornada comigo, ela aceita o desafio e juntas passamos seis meses a partir da dramaturgia desenvolvida, pesquisando todos os estados de Flóris, todas as fraquezas de Flóris, e quanto mais eu acessava a Flóris, mais eu emergia em Juliana e mais atravessamos Naomi. Nós duas compreendemos então que Escolhas era o nosso filho juntas, pois o processo de montagem foi uma gestação das nossas essências e juntas parimos as nossas narrativas.


Assim, Escolhas é parte de Juliana, de Flóris, de Naomi, de Ágada, de Michele, de Luara, de Lelê, de Celi, de Miriã e de tantas manas e pessoas LGBTQIAPN+ que sofremos violências apenas por sermos quem somos.


A palhaçaria me ensinou a reverenciar o ser em sua grandeza, a valorizar mais o SER do que o TER, a buscar o prazer no riso transgressor e finalmente a saber que a minha melhor ESCOLHA, é escolher a mim: FLÓRIS DA SILVA, MULHER PALHAÇA!

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